uma correspondência à Louise Bourgeois
- Anelise Valls
- 26 de mar.
- 9 min de leitura
Querida Louise,
encontrei uma folha solta de um escrito teu em inglês e me
chamou muito a atenção o desenho-imagem que fizeste no canto
superior esquerdo. Fiquei presa junto com aquela letra “i”
entre arestas, em um cubículo. Este “i” que posso traduzir
como “eu”, que permanece preso em um espaço que me causa a
impressão de achatamento. Me lembrou o desenho de uma flor
de Maiolino (da série “Entre Pausas” de 1968-69,) que vai
perdendo as pétalas pouco a pouco até se converter em um uma
pequena haste que também lembra um “i”, um “eu” trêmulo que
tomba ao fim da página. É meu trabalho favorito da artista
brasileira. Paulo Herkenhoff me comentou que gostaria de
fazer uma exposição sobre vocês duas e eu mal cabia em mim
de tamanha excitação, tomara que aconteça! Acho que vocês
têm tudo a ver!
Ah, também me chamou a atenção a data registrada no papel:
13 de setembro. Aniversário de minha mãe. Tu tinhas uma
relação um tanto peculiar com a tua, me identifico com a
imagem de uma Maman que é inteligente, paciente e protetora.
No ano de teu escrito (1957) minha mãe completava oito anos.
Bem, mas o que me interessa mesmo te comunicar é que não pude deixar de traçar um paralelo entre o desenho de teu manus-
crito e o momento em que estamos vivendo, desde 2020. Estamos confinados como o teu pequeno “eu”. “i” em um quadrado com
um teto o comprimindo, me lembra os recintos que tu criaste
para Cell e a casa/estúdio a que tu te restringiste.
Também me deparei com uma foto onde tu estás na soleira da
escada da tua casa na 347 West 20th Street e lembrei dos
tempos sombrios em que sofreste com agorafobia, sobretudo a última década de vida, em que passaste quase completamente confinada em casa. A segurança do lar e o medo do mundo exterior conviviam.
Não pude deixar de traçar um paralelo entre o momento em
que estamos vivendo, desde 2020, os recintos que tu criaste
para Cell e a casa/estúdio a que tu te restringiste. Te escrevo com a sensação de ter me convertido em um dos teus
desenhos de 1946-47, a série das Femme-maison. Tu, como poucas
artistas que conheço, soubeste convocar a vida doméstica sem
permitir a estabilização de significados. Tuas imagens ambíguas,
e o jogo contrastante dos elementos com os quais trabalhas,
nunca resultaram em síntese para mim, mas sempre sustentaram
a tensão de modo a gerar uma rachadura no sentido, arruinando
qualquer aprisionamento de uma única versão.
Quero me ater a te contar mais sobre esse aprisionamento, que
antes de qualquer coisa é físico. Estar entre quatro paredes,
hoje, é uma condição de sobrevivência, devido a uma situação catastrófica que assola o mundo. Se uma infinidade de adversidades enfrentadas nos mais diversos âmbitos sociais já nos coloca, mulheres, diante de novos desafios a todo momento, imagina os danos causados em todas nós recentemente!
Te explico: o cenário global desde 2020 se mostrou terrível devido
à transmissão do coronavírus, situação que exigiu o distanciamento
social. Vírus letal, matou milhões de pessoas pelo mundo afora!
Foram mudanças drásticas e mesmo quem podia ficar em casa, como
foi o meu caso, bastante privilegiado, não se sentia bem acomodado
ou acolhido com o que se passava lá fora por conta das notícias.
Os últimos anos causaram em nós todos danos profundos e intensos.
O espaço doméstico explicitado por meio da utilização de um repertório imagético que remete a cômodos e seus mobiliários, próprio às perspectivas da tua série Cells, encontra forte relação com o ambiente de confinamento ao qual nos encontramos nos últimos anos. A aparência de redomas produzida por tuas obras nos situa diante da realidade que enfrentamos e que passou a contar com o distanciamento social, somado a protocolos para a prática de higienização das mãos, uso de máscaras faciais de proteção individual e restrições de eventos onde houvesse aglomerações, viagens e tantas medidas de precaução sobre a nova doença. Muitas de nós, não podendo permanecer em casa ou sob o privilégio de permanecer em residência, convivemos com o medo da contaminação, que instaurou sentimentos e sensações ligadas à fragilidade e à insegurança. Além da saúde mental coletiva severamente abalada, no Brasil, vivenciamos em inúmeras regiões e diferentes períodos da crise, a constante iminência de colapso no sistema de saúde, bem como graves complicações na economia e de instabilidade política. A área da educação e cultura, por sua vez, carente de investimentos
há bastante tempo, acabou sofrendo prejuízos severos. Aqui no “sul da quarentena” 3, o inimigo invisível que, a gente sabe, se trata do mercado capitalista - bendição para os poderosos e uma maldição para a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida não humana - é cada vez mais impiedoso. Nosso inimigo explora, extrai, divide, despoja e decide quais vidas
importam e quais não importam diante do confinamento imposto pelos governos para conter o contágio do vírus. Sei que cultivas interesse pelas relações que podem se estabelecer com a vida doméstica, então te trago notícias, mesmo que não desejáveis. A pandemia nos exige fazer um recorte de classe importante e que não parece preocupar o governo brasileiro, em que boa parte da população é carente das condições necessárias para realizar o isolamento devido às condições precárias de trabalho, de saúde e de moradia. Milhares de pessoas puderam se recolher em suas residências e adotar regimes de trabalho bastante popularizados como “home office”, sem creches e redes de apoio para atenção aos filhos e aos idosos e com todo o trabalho doméstico a ser realizado. Por conseguinte, uma das constatações mais nefastas observadas nesse cenário foi a exacerbação da situação de violência que as mulheres vivenciam. Inclusive,
a primeira morte oficialmente registrada aqui no país foi de
uma trabalhadora doméstica.
Eu lia tua conterrânea, a teórica Françoise Vergés, que se referia
ao “trabalho de cuidado e limpeza que é indispensável e necessário
ao funcionamento do patriarcado e do capitalismo racial e neoliberal”
4, em que estes, por sua vez, adotam uma política dos direitos das
mulheres que serve a seus interesses. Impossível furtar-se do fato
de que tal trabalho é marcado pelo gênero, racializado, mal pago e
subqualificado, tampouco suas estruturas passam despercebidas, se
colocam, antes, como fatos visíveis a quem deseja vê-los: são frutos
de um patriarcado colonial extremamente violento, racistas, misógi-
no, homofóbico, transfóbico. Há de se concordar com Vergés, “o con-
finamento é uma política de ricos” 5. Mesmo com todos os impactos da pandemia, sobretudo as limitações impostas pela necessidade do isola-
mento social, que implicaram nos fechamentos de espaços expositivos
e de eventos culturais, na ausência de público, na redução drástica
de receita, acompanhamos trabalhadores do meio artístico e cultural
buscando meios possíveis para continuar exercendo suas atividades.
Infelizmente diversos teatros, museus, festivais e centros culturais
fecharam suas portas permanentemente. Testemunhamos o crescimento
intenso do uso da internet e das redes sociais que, por vezes, se
mostraram aliadas não só como recursos tecnológicos para a comunica-
ção como também no desenvolvimento e propagação de trabalhos artís-
ticos, ainda que no Brasil, parte muito significativa da população
ainda não tem acesso às tecnologias 6. Artistas e profissionais da
área, no intuito de manterem-se em atividade e tornar seus trabalhos
visíveis procuraram outras maneiras e outras mídias ou exposições
menores adaptadas às novas medidas, mesmo com o escasso incentivo
financeiro 7. Tudo muito incerto, condições que nos exigiam “maneiras
de nos reinventarmos” como muito se repetiu por aí. Mas quais manei-
ras foram/são possíveis? Como não fracassar diante da experiência de
telas cuja prática reivindica que corpos estejam isolados? Como con-
tagiar as pessoas com algo que as tire do estado de paralisia, medo e
insegurança? Que ferramentas a Arte pode apresentar que sejam frutí-
feras e criem conexão com pessoas que se sentem limitadas, impedidas,
amedrontadas, desafiadas? Quais outros formatos pode a Arte ganhar
especialmente no que se refere à sensibilização das pessoas, na com-
preensão do que se passa pelo mundo e na ressignificação da realidade?
Existem alternativas para vencer a cruel pedagogia do vírus? Afinal,
quais papéis cumpre a Arte em tempos como os nossos?
Louise, se lanço tantas perguntas (a ti, a mim, a nós) é porque confio
que tua vida e obra podem trazer algumas chaves que joguem luz em
saídas que não estão dadas, mas que tu inspiras a construir.
Encontrei numa experiência anterior que havia tido com teu trabalho
um caminho possível para tornar tais incertezas menos nebulosas.
Em 20 de julho de 2019, por ocasião da vinda da tua obra “Spider”
(Aranha) à Fundação Iberê Camargo, havia realizado uma oficina a
convite da coordenadora do Programa Educativo, Larissa Fauri, em uma das edições dos Encontros de Educadores promovidos na institui-
ção. Tua obra datada de 1996, que integra a Coleção Itaú Cultural,
chegara pela primeira vez ao Rio Grande do Sul para uma temporada
de dois meses e se encontrava no hall de entrada do edifício, junto
à gravura “Spider and Snake” (2003) exposta em uma das paredes. A
oficina tinha entrada franca bem como a visitação, e contou com 25
inscrições prévias e 17 participantes no dia. Uma vez que a proposta da instituição consistia em sair dos moldes de uma palestra no auditório e ocupar o espaço no qual a
obra se encontrava, permitindo que o público abandonasse o estado
passivo de escuta e migrasse para um movimento ativo e próximo às
tuas criações, propus três atividades ao longo da apresentação.
Para realizá-las, o espaço continha uma mesa com pranchetas com
papel sulfite, lápis de cor e gizes de cera. Todos os participan-
tes além de receberem este material, ganharam trechos dos teus
diários que seriam lidos em diferentes momentos do encontro. Um
monitor também estava disposto no espaço reservado à atividade,
apresentando imagens ao longo da comunicação que ilustravam diferentes momentos da tua vida, bem como as produções que eram
comentadas. Foi feito um aquecimento com os participantes que se
apresentaram dispostos em círculo na frente da “Spider”, segu-
rando um novelo de lã que eu havia levado e era lançado a um novo
colega a cada vez que alguém contava um pouco sobre si. Ao fim,
tínhamos uma teia tramada que foi deixada sobre o chão durante o
encontro para marcar a dinâmica que iria conduzir aquela manhã:
encontrar pontos de contato, possíveis (ou improváveis) víncu-
los e um certo comum na tecedura entre arte e vida.
Após apresentar os teus principais marcos biográficos, parti
para a exposição de obras que continham peças de roupas tuas,
o que conduziu ao primeiro exercício nomeado “Extrato arqueo-
lógico de uma vida”. Pedi ao grupo que pensasse em uma peça de
roupa (íntima e/ou pessoal) que possuísse significado, simbo-
lismo, memórias, afetos e que eles a reativassem como presença
substanciada em um desenho a ser feito no papel. A ideia era se
conectar com um passado, permitir a reconquista do esquecimento,
trabalhar com emoções que podiam ser rememoradas. Na sequência,
o exercício que intercalou a apresentação da série Cells con-
sistiu em convidar as pessoas a criarem para si uma Cell. Elas
deveriam imaginar todos os elementos que levariam para dentro,
os materiais que a compunham, o título, se ela estaria aberta
ou fechada, reparar nas cores, e toda sorte de componentes ima-
ginários possíveis. Por fim, o último exercício se deu quando
minha apresentação se concluía com a série que representava os
aracnídeos, e o público podia então eleger e desenhar um animal
que representasse a figura materna, (podendo ser desdobrada
na figura de uma avó, ou madrinha, ou melhor amiga, irmã, tia,
etc.) tomando atenção para as características que teria tal ser.
Se te conto sobre essa experiência é porque a considero em-
brionária na prática do que pretendo desenvolver durante esses
meses em que tenho o privilégio de poder ficar em casa. A con-
versa proveniente da experiência de quem participou neste dia
me aponta sinais de que algo foi mobilizado. Os relatos contaram
de sensações e percepções que não estavam presentes no começo
do encontro, as criações dos participantes comunicavam-lhes e
devolviam-lhes algo que os colocavam em um estado ora de re-
consideração, ora de reconhecimento, ora de estranhamento, ora de incerteza. Muito do que foi compartilhado entre o público
gerou outras identificações e deslocamentos de olhares sobre
si e sobre os demais. Tal acontecimento me estimulou a seguir
desenvolvendo uma abordagem que tirasse as pessoas de um certo
estado para a abertura de novas representações, associações, em
que a matéria biográfica fosse valorizada, em que vestígios de
singularidade fossem alcançados, em que fosse possível carto-
grafar a trajetória individual em busca de acentos coletivos.
Em suma, essa experiência havia me colocado diante da possibi-
lidade de oscilar uma bússola que me apontava uma nova direção.
Em meio a tantas transformações - das menores àquelas que
ainda não conseguimos mensurar - em tantos territórios aciden-
tados política, social e economicamente - e também subjetiva,
sensível e metaforicamente - pensar nos processos, fluxos e
interconexões é tarefa árdua. Como encontrar escapatória aos
modos de representação inertes e petrificados que o pensamento
conceitual impõem?
Louise, não temos ao certo quando termina a pandemia e eu
decidi que conduzirei a experiência do encontro na Funda-
ção Iberê Camargo para os moldes virtuais. Me pergunto se as
pessoas desejarão participar de uma aula sobre artistas mulhe-
res com exercícios que elas desconhecem, sobretudo por estarem
paralisadas, com medo, inseguras devido ao que nos assola,
muitas isoladas em suas casas .
Te mando um beijo enquanto miro tua foto parada na soleira da
escada como quem nos convida a visitar... senão umas às outras,
que seja uma visita a si mesma!
Me deseje sorte!
E mais um abraço afetuoso,
Ane.


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